Ensino a Distância

Axiomas de dois meses à distância

Como irá a pandemia do coronavírus alterar o mundo? Ninguém sabe ainda. Mas as medidas que estão a ser tomadas numa escala de tempo que se mede em dias, semanas e meses irão certamente marcar o futuro nas próximas décadas. 

Agora que faz cerca de dois meses que o ensino superior adotou o modelo de aprendizagem de ensino a distância (EaD), já é possível sintetizar em forma de axiomas algumas das lições aprendidas. Note-se que, por definição, um axioma é um princípio de verdade que não é provada, mas é considerada como óbvia ou como um consenso inicial para a criação de uma teoria. Por essa razão, um axioma é aceite como verdade e serve como ponto de partida para a inferência de outras verdades.

1. O EaD não é tão complicado quanto parecia. O surto da pandemia do coronavírus permitiu mostrar que o EaD é possível e mais fácil do que parecia. Através de uma experiência natural e aprendendo da forma mais difícil tudo o que pode ser feito remotamente, temos sido capazes de conduzir a educação tradicional a distância usando meios digitais de apoio à aprendizagem como o Zoom, o Microsoft Teams e o Moodle. Embora ainda seja necessário identificar formas de garantir maior comprometimento efetivo dos estudantes, a EaD irá certamente evoluir e proporcionar a abertura de novos espaços de aprendizagem.

2. Somente as crises produzem mudanças reais; quando elas ocorrem, as ações tomadas dependem das ideias que estão por aí. Esta expressão terá sido cunhada pelo Nobel da Economia de 1976, Milton Friedman, mas o momento demonstra que não perdeu atualidade. Há muitos anos que o EaD “anda por aí”. Há muitos anos que o EaD é o futuro. Já em 1988, a Universidade Aberta foi criada com esse fim, mas não conseguiu dar o salto que todos esperavam. Era cedo demais para ter sucesso. Ao mesmo tempo que a tecnologia se desenvolvia, o EaD era experimentado pelas instituições, mas sem o reconhecimento desejado. De repente, a pandemia interrompeu totalmente um sistema educacional centenário que muitos afirmavam estar a perder relevância. Dois meses volvidos, e depois do investimento das instituições do ensino superior em meios digitais, o grau de aceitação e o tempo de impregnação do EaD poderá tornar inevitável o inimaginável – o surgimento de um modelo educativo híbrido, onde a soma das partes (presencial e distância) é maior do que o valor individual. Acredito que a aprendizagem presencial tradicional e o EaD podem andar de mãos dadas. 

3. O EaD identificou uma divisão digital, mas apoia uma ligação universal. A divisão digital tem sido um grande desafio do EaD. O confinamento veio mostrar que ainda há muitas regiões do país e famílias com deficientes acessos à internet e sem meios tecnológicos suficientes. Por exemplo, em Portugal, cerca de 22% das famílias não tem ligação de banda larga à internet (PORDATA, 2019). Portanto, esta crise veio ajudar a identificar as áreas de intervenção prioritárias para atingirmos uma cobertura tecnológica universal e, assim, melhor prepararmos o país para a era digital.

4. O EaD exclusivo compromete a perenidade social. O modelo de ensino COVID-19 - ensino puramente a distância - é temporário e durará apenas até regressarmos à normalidade. Ainda bem. Os impactos sociais do EaD começam agora a manifestar-se, mas a verdadeira dimensão é ainda totalmente desconhecida. Contudo, tudo indica que a adoção exclusiva deste modelo de ensino traria implicações pedagógicas e socais nefastas a longo prazo. Já alguém imaginou tirar um doutoramento em Berkeley, a partir de Barcelos, sem nunca ter colocado os pés no campus? O ensino sem pessoas é um ensino sem referências. Este modelo de ensino tem mostrado ser útil em modo de emergência, mas a falta de presença física limita os horizontes humano e científico.

Portanto, nas próximas semanas iremos continuar nesta experiência natural e a aprender todas as vantagens e desvantagens do modelo de EaD. Uma coisa é certa, o regime jurídico dos graus e diplomas do ensino superior (DL n.º 65/2018) estabelece que, em situações normais, os ciclos de estudos acreditados pela Agência de Avaliação e Acreditação do Ensino Superior “só podem ser ministrados nos locais para onde foram acreditados e registados, ou a distância se isso constar expressamente do ato de acreditação”, pelo que boa parte dos cursos não poderá ser ministrada em modelo de EaD no pós-pandemia. Mas o regime jurídico ou os planos dos ciclos de estudos serão certamente alterados e, nessa altura, haverá certamente mais axiomas para ajudar a definir o novo modelo educativo.

27 de maio de 2020

Elói Figueiredo

Estes axiomas surgiram como síntese de ideias discutidas em várias publicações realizadas no jornal Sol.